Estilhaços
morrer de susto deve ser do coração desistir depois de muito tentar sair; e pode até ser de o conseguir.
a escola tinha começado há pouco tempo e a professora como todos os dias tinha acabado a correcção das nossas redacções.
ia chamar os piores, eu a sonhar e a acreditar que desta vez não era, mas
- joão.
se não fosse o meu pai no dia antes à noite a zanzar pela cozinha, a minha mãe
- despacha-te
eu a despachar-me e a letra a ficar mais torta para o final, talvez não fosse chamada.
lá fomos eu e mais seis ao quadro, ali muito alinhadinhos senão em vez de duas palmatoadas eram quatro.
o carlitos a chorar ainda antes de levar que depois parava, era sempre, e o raio do preto a fazer caretas.
lá passou como um temporal fora de época, o vermelho de uma mão qualquer, a princípio a trepar muito depressa pelo braço acima e depois na cara a demorar como o fumo dos aviões lá muito em cima, cada vez mais largo mas muito devagarinho e depois a desaparecer sem se dar por isso.
eu cuspia na mão a querer fazer o coração parar de bater nela, o avião andar mais depressa, que não andava.
eu cuspia na mão mas nunca dava pelo fim daquilo.
era ao contrário dum susto, dum sonho a acabar, lá acabava por acabar, apenas e ao invés de como daquela vez no telheiro atrás da escola o preto a chegar-se muito para mim, o cabelo dele muito loiro quase branco que fazia impressão, as sardas que parecia doente e os olhos como se nem tivesse
- dá-me um beijo.
não consigo dizer quanto tempo estive a tomar consciência de mim, das paredes, de respirar; não sei se haveria algum avião mas sei que nem medi quanto era suficiente para não deixar que se me escapasse o coração quando ele
- dá-me um beijo
e eu quase logo a correr dali para fora com quanto sangue em arrancos ainda me restava no peito, sem olhar para trás, sem trazer nada, a esquecer o avião se houvesse algum, a só ver um rasto branco a ficar largo tão depressa que se via, e eu sem trazer nada, a correr muito e só aquilo dentro da cabeça
- dá-me
alguém
- despacha-te
e outro alguém a despachar-se.
foram dias e dias, noites a fio a acordar muito devagar mas a nunca mais me apressar se à noite as minhas irmãs já a dormir, o meu pai a zanzar pela cozinha, a pensar na minha mãe e em
- dá-me
e ela, claro
- despacha-te.
nunca mais.
podem dizer-me que perdi algo porque sei que havia mais, mas hoje, décadas mais tarde, o preto ainda mais loiro adivinhou ao ver a minha mesma cara que daquela vez
- nunca mais te esqueceste
a achar que me acalmava, a não saber que não, a sorrir sem ser o riso das caretas que fazia e a recomeçar
- que é feito de ti
que nada de especial mas a mentir
- o normal, casei, tive filhos
a pensar, dei.
não tenho a certeza se perdi muito mas perdi algo, certamente, com o engano muito demorado de só tarde demais ver que
- dá-me um beijo
era afinal uma troca.
FIM
a escola tinha começado há pouco tempo e a professora como todos os dias tinha acabado a correcção das nossas redacções.
ia chamar os piores, eu a sonhar e a acreditar que desta vez não era, mas
- joão.
se não fosse o meu pai no dia antes à noite a zanzar pela cozinha, a minha mãe
- despacha-te
eu a despachar-me e a letra a ficar mais torta para o final, talvez não fosse chamada.
lá fomos eu e mais seis ao quadro, ali muito alinhadinhos senão em vez de duas palmatoadas eram quatro.
o carlitos a chorar ainda antes de levar que depois parava, era sempre, e o raio do preto a fazer caretas.
lá passou como um temporal fora de época, o vermelho de uma mão qualquer, a princípio a trepar muito depressa pelo braço acima e depois na cara a demorar como o fumo dos aviões lá muito em cima, cada vez mais largo mas muito devagarinho e depois a desaparecer sem se dar por isso.
eu cuspia na mão a querer fazer o coração parar de bater nela, o avião andar mais depressa, que não andava.
eu cuspia na mão mas nunca dava pelo fim daquilo.
era ao contrário dum susto, dum sonho a acabar, lá acabava por acabar, apenas e ao invés de como daquela vez no telheiro atrás da escola o preto a chegar-se muito para mim, o cabelo dele muito loiro quase branco que fazia impressão, as sardas que parecia doente e os olhos como se nem tivesse
- dá-me um beijo.
não consigo dizer quanto tempo estive a tomar consciência de mim, das paredes, de respirar; não sei se haveria algum avião mas sei que nem medi quanto era suficiente para não deixar que se me escapasse o coração quando ele
- dá-me um beijo
e eu quase logo a correr dali para fora com quanto sangue em arrancos ainda me restava no peito, sem olhar para trás, sem trazer nada, a esquecer o avião se houvesse algum, a só ver um rasto branco a ficar largo tão depressa que se via, e eu sem trazer nada, a correr muito e só aquilo dentro da cabeça
- dá-me
alguém
- despacha-te
e outro alguém a despachar-se.
foram dias e dias, noites a fio a acordar muito devagar mas a nunca mais me apressar se à noite as minhas irmãs já a dormir, o meu pai a zanzar pela cozinha, a pensar na minha mãe e em
- dá-me
e ela, claro
- despacha-te.
nunca mais.
podem dizer-me que perdi algo porque sei que havia mais, mas hoje, décadas mais tarde, o preto ainda mais loiro adivinhou ao ver a minha mesma cara que daquela vez
- nunca mais te esqueceste
a achar que me acalmava, a não saber que não, a sorrir sem ser o riso das caretas que fazia e a recomeçar
- que é feito de ti
que nada de especial mas a mentir
- o normal, casei, tive filhos
a pensar, dei.
não tenho a certeza se perdi muito mas perdi algo, certamente, com o engano muito demorado de só tarde demais ver que
- dá-me um beijo
era afinal uma troca.
FIM
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