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A mostrar mensagens de 2003
Dou comigo a olhar o mar. A primeira coisa que me salta à vista é o horizonte. Essa linha que esconde coisas, que faz nascer sonhos, que leva os pensamentos ... normais. Ali loooonge! Penso neste “longe” e tento imaginar quão longe será. Para quem tenha um mínimo de conhecimentos de geometria, será relativamente fácil calcular esse longe; a que distância está a linha do horizonte. Bom. Se traçarmos uma circunferência que represente, razoavelmente, a terra e desenharmos sobre ela, na vertical, um “pauzinho” que represente uma pessoa, basta traçar uma linha que parta da “cabeça” desse pauzinho e seja tangente à circunferência que representa a terra. Depois, é só medir o comprimento do arco que vai desde os “pés” do pauzinho até ao ponto onde a linha que lhe partiu da “cabeça” toca, à tangente, a circunferência da terra. Imediatamente se compreende que, quanto mais alta for a pessoa, mais distante está a “sua” linha do horizonte; isto é, mais longe vê. Daqui se prova qu
Está sempre a meio caminho entre o longe e o perto, tão longe do aqui quanto perto do agora, a vida que passa ao largo, à vista, ali: um pouco à mão. Só um pouco de desequilíbrio seria suficiente; um pouco menos de rigidez seria suficiente. É o medo da queda, ou talvez melhor: o medo do resultado da queda e uma certeza não demonstrada de que uma queda é sempre para baixo. É a gravidade da decisão que somos criados a assimilar. Sou levado (levo-me) a suspeitar que as grandes coisas foram, apenas, quedas para cima, de quem não se deixou acostumar à gravidade da regra.
CONTANDO CORVOS O bosque que esconde os edifícios da universidade lembra contos de fadas e guerreiros que empunhavam espadas montados em éguas. Caminhos de terra batida, por pés que ninguém lembra, serpenteiam evitando os plátanos, e rasgam o relvado que cobre toda a área. Acho que nunca temos tempo suficiente para podermos considerar uma cidade estranha, num país estranho, familiar. Gente igual que vemos diferente; ruas iguais a tantas diferentes das minhas. A língua! A língua que nos emprestam mas sabemos ser só deles. O "eles" que significa tudo o que não é "nós" e jamais será. Tantas maravilhas difíceis de fotografar e, claro, impossíveis de descrever. Tanto e tanto que guardamos. Tanto e tanto que esqueceremos. E eu, perdendo a conta a cada minuto, sigo contando corvos.
Sobe o rio uma leve ondulação tocada pela brisa, de feição. O regresso distraído seria, ainda mais, afastamento – o mundo ao contrário. Sob esta ilusão, tão vívida visão do apocalipse, a massa de água segue o seu curso de sempre: concreta, doce, paciente com os diques, implacável com o mar. Bastaria segui-la. Casa, é para onde nos levam forças invisíveis e só parcialmente explicáveis.
ESTUPORADO ASSOMBRO Daqui se vê a outra margem; uma encosta íngreme suportada pelo casario irregular (ou vice-versa), não só de pescadores. Já se sabe que foi o rio quem as formou: àquela e, ao mesmo tempo, a esta onde me encontro. Desde há muitos séculos, milénios, milhares de milénios (quem sabe há quanto tempo teria nascido o sempre), trabalhou continuamente e, porque talvez não se saiba que continua a deter, intacto, o poder de alterar, ainda mais, as feições desta porção de terra, ele continua a passar por aqui sem deixar pasmados todos os que o olham.
O SENHOR IMPORTANTE O senhor importante não se atrasa. O senhor importante agradece, uma vez. O senhor importante não se desculpa porque o senhor importante não se culpa. O senhor importante é dono de muitas coisas. O senhor importante é afável em face de outro senhor importante e muito afável em face de um senhor muito importante. Todas as pessoas não importantes conhecem o senhor importante e o convidam para suas casas, o que ele recusa a menos que não seja o primeiro. Algumas pessoas não importantes acham que sabem onde mora o senhor importante. Ninguém sabe a opinião do senhor importante sobre determinado assunto. Quando alguém lha pede ele responde com um gesto ou um aceno de cabeça. Todos ficam satisfeitos e sorriem. Tudo no senhor importante é óbvio, claro e justificado. O senhor importante é muito eficiente e tem sempre muitos colaboradores que lhe entregam as vidas a troco de relógios. O senhor importante aparece poucas vezes na TV e sempre q
20 de Maio - Primeiro aniversário da Independência de Timor-Leste Timor-Leste independente completa, hoje, um ano de existência. Ouvi, na rádio, o presidente Xanana Gusmão chorar. Parece que o povo timorense está a passar um mau bocado. País jovem, problemas de organização, de segurança, problemas económicos, etc. Os timorenses começam a dizer que se vivia melhor no “outro tempo” e o presidente Xanana chora de, digo eu, quase desilusão. Lembro-me, agora, das imagens dos saques ao Museu de Bagdad, já para não falar nos outros. Sabe-se que no “outro tempo” tais acontecimentos eram impensáveis. Ouço dos meus pais, gente simples, palavras de saudade dos tempos pré 25 de Abril de 74 ao testemunharem tantas e tantas injustiças e iniquidades da democracia que agora temos. (Dois menores que há um mês alvejaram, a tiro, uma menina que brincava no recreio da sua escola e foram capturados para logo serem entregues aos pais, voltaram a fazer asneiras. Apoderaram-se da chave d
30 de Abril Portugal no mundo! Inaugura-se hoje, numa remota cidade do Japão, um museu dedicado a um português que, no século XVI, ali arribou e por lá ficou. O museu, pretendem os promotores, serve para homenagear o homem e dar corpo à estima que não só a cidade mas todo o Japão lhe têm. Luiz Fróiz, jesuíta. Não sabia. Entre muitas coisas, o homem é o autor da única “História” do Japão sobre aqueles tempos. Admirável. Das muitas iniciativas a realizar nessa cidadezinha, conta-se uma particular: foi convidada uma fadista portuguesa, com discos editados no Japão (!!!!) a realizar um concerto ao vivo. Admirável. Entrevistada na rádio e questionada sobre a razão da admiração japonesa pelo fado, a dita fadista responde: “Ah! Isto começou há muitos anos quando o fado chegou ao Japão pelas mãos da Amália.” Fiquei a saber também que o dia de ontem se prolonga hoje e nos próximos tempos com um curso de Tango. Convites à participação, entrevistas rápidas a pro
29 de Abril Hoje é um daqueles dias, cada vez mais frequentes com o crescente efeito do oxigénio no meu corpo (dizem os especialistas em envelhecimento), em que não me levantei da cama de bom grado. Ao que parece, envelhecemos porque oxidamos. Lembrei-me das janelas de casa dos meus avós maternos, todas em madeira, e da recusa do meu avô em as envernizar; dizia que cada dia estavam mais bonitas; e estavam. A minha avó dizia: desmazelo. Pontos de vista. Lembrei-me do banco de jardim que o meu pai havia comprado num leilão de velharias e servia agora quem quisesse descansar no minúsculo pátio lá de casa. Lembrei-me da ferrugem que alastrava sob camadas de esmalte verde que o meu pai ia renovando e da forma enrugada que dava às rosetas, travessões e curvas de que a estrutura metálica do banco era composta. A minha mãe dizia: preguiça. Pontos de vista. Belas janelas, belo banco. Não me animei muito com a ideia. Concluo que a tal oxidação dos seres afecta também a capa
24 Abril Dia Mundial do Livro, Dia Mundial Disto e Dia Mundial Daquilo. Um “Dia Mundial de ...” é como uma missa, em que se fazem coisas que poderiam fazer-se noutro dia qualquer, mas não: assinala-se o dia específico e, sendo mundial, todo o mundo faz coisas relacionadas com o assunto pretendido. Tenho pavor a dias mundiais, quase tanto quanto tenho pavor a missas. É que sou levado a esperar pelo tal dia para fazer algo que poderia já ter feito antes, noutro dia qualquer mais a meu jeito. Gosto muito mais dos outros dias que, tanto quanto eu saiba, não são dias mundiais de coisa alguma. Embrenhado nestes pensamentos, ainda aromatizado com o dia de ontem, dou comigo a pensar num senhor, prémio nobel da literatura logo autor de alguns livros, inglês, filósofo e matemático; Bertrand Russell. Este senhor não devia preocupar-se muito com “Dias Mundiais” e coisas que tais, senão não tinha arranjado, pelos seus próprios meios, uma forma de quase acabar com a matemática;
23 Abril - Dia Mundial do Livro Hoje terminei, enquanto almoçava, um livro. A vida faz da hora do almoço, a minha hora de leitura, enfim. Procuro escolher, sempre, pratos que não me ocupem ambas as mãos. Hoje: macarrão com bacon e natas. Livrinho na mão esquerda, com a direita, encho a boca tanto quanto possa para poder numa mastigadela ler uma ou duas páginas. Almoçando no centro comercial, sentou-se ao meu lado esquerdo uma senhora que, como não trazia leitura, pode escolher comer uma bela de uma dourada grelhada. Nos fugazes momentos em que os meus olhos passavam do papel para o macarrão e vice-versa, pude apreciar a dona a usar ambas as suas cuidadas mãos no manuseio da sua pobre dourada de olhos arregalados, coitada. Não invejei: nem a dourada nem a senhora. Bom! Numa dessas rápidas viagens de olhos pude ver a senhora olhar para os meus lados e voltar a mirar o seu prato com uma expressão, se me é permitido dizer, de nojo. Imaginei que fosse motivada pe
7 Abril “Papá! A professora disse, hoje, que quem tiver a ‘cópia mais perfeitinha’, pode começar a utilizar esferográfica” disse a pequena quando me viu, chegado a casa tarde como sempre, interrompendo a tal cópia, que tudo significava, que tinha como trabalho de casa. Disse-me isto com um tal brilho no olhar que não pude deixar de me sentir comovido; “como o tempo passa!” pensei. Sei a razão da alegria da miúda: afinal, dava-se conta de mais um passo a caminho da idade adulta (os adultos escrevem com esferográfica). Voltei a pensar: “como o tempo passa!”. A cópia foi das mais perfeitinhas e hoje, a Beatriz, tem cuidados redobrados na utilização da sua nova ferramenta. Não pode, ainda, dar-se conta do significado profundo do “definitivo” que a esferográfica tem ligado a si, nem pode dar; mas já sabe que os erros feitos a esferográfica não podem apagar-se. Não posso deixar de admirar a coragem com que a miúda se lança, desde aquele dia, nesta nova tarefa de grande
27 Março Esta noite tive um sonho. Acordei com o coração a tentar forçar a saída do corpo e todo mijado. Nesse sonho, vivia numa terra que me pareceu esta terra. E nessa terra, nesse dia, nesse pequeno espaço de tempo percorrido pelo meu sonho, homens e mulheres, novos e velhos, pretos, brancos e amarelos abraçavam-se. A onda de emoção era tão grande que muitos não conseguiam sobreviver ao acelerar dos seus corações e caíam fulminados; outros, como gatos, mijavam-se de excitação e alegria imensa. Os jornalistas tentavam acorrer com a sua parafernália tecnológica aos inúmeros grupos que espontaneamente se formavam por todo o mundo: da Finlândia à África do Sul, do Japão à Guatemala, ignorando que ninguém estava a ver ou a ouvir as suas reportagens. Ainda pensei que esse era o dia em que “todos os povos falarão uma só língua” mas em lado nenhum se ouviam vozes. As pessoas limitavam-se a trocar abraços, sorrisos, lágrimas ... e mijo. Pensei: é esta a terra
“Hoje, num vento do norte, fogo de outra sorte, sigo para o sul. Sete mares.” canta a Sétima Legião. Será o vento frio do norte que nos empurra para o calor do sul? Será necessário? Será o sofrimento que nos empurra para a felicidade? Caramba! Pode ser, pode! E o contrário? Não é, afinal, a vida que nos leva à morte? Fiquei, de repente, preocupado: para onde “segue” alguém que, como eu, vive dias de felicidade? O que há para lá do bem?
"O Aprendiz de Feiticeiro" é um conjunto de crónicas de Carlos de Oliveira. Numa delas, "A dádiva suprema", o autor fala sobre o poeta Afonso Duarte. A crónica termina no funeral deste e com estas palavras: "Chamem um dos velhos canteiros de Ançã (a dois passos daqui) e mandem gravar na campa do poeta o epitáfio que ele próprio escreveu: A dádiva suprema é dar a vida ao silêncio de pedra que é a morte. Larga-me da vida, morte, faz-me da morte pedra. Um desses humildes herdeiros dos escopros de João de Ruão. Chamem-no depressa. Com o sol que está, as palavras ficarão doiradas." Belas palavras; de um e outro.
Entrevista na rádio, rápida. O noticiário, impaciente, à espera da sua vez. Uma entrevistada, Drª, respondia a questões sobre os estabelecimentos prisionais; os dramas que lá se vivem: a droga, as doenças infecto-contagiosas, a claustrofobia; assuntos importantes sobre os quais há que pensar para reformular. Tudo certo. A Drª, não sei se por força da rapidez da entrevista que exigia palavras mais depressa do que o seu cérebro poderia elaborar, iniciava, invariavelmente, cada resposta, cada afirmação, com uma expressão que me lembrou algo que escrevi em tempos: "No nosso ponto de vista..." O plural do possessivo justifica-se já que ela estava a falar em nome de uma organização, um conjunto de pessoas. Já o "ponto de vista" não consigo explicar muito bem. Não estaria a falar, com toda a certeza, segundo o MEU ponto de vista!!! Por isso, encarei a utilização da expressão como muleta, como pequeno atraso, enquanto o seu cérebro procurava colocar