Mãe

"Ora, uma noite de véspera de feriado, em que não houvera, pois, estudo; uma noite longa, de borrascoso Inverno, meu pai leu mais tempo, num livro ilustrado de gravuras e cujos cantos inexplicavelmente nós víamos roídos dos ratos.

De onde a onde, a voz de meu pai, alterada, velava-se, por largo espaço; ao depois, não me recordou mais o que fora que ele nos estivera lendo; mas uma passagem, essa, não se me esvaiu nunca.

Era alguém que estava relatando, não sabia eu a quem, a sua vida; e esse alguém era orgulhoso e infeliz; que maior desdita do que, com receber a vida, dar a morte a sua mãe?

O desgraçado tomava soberba dessa catástrofe. Diria: «Custei a vida a minha mãe, e o meu nascimento foi a primeira das minhas desgraças.» Mas dissera: «Sinto o meu coração e conheço os homens. Não sou feito como nenhum dos que tenho visto; ouso crer não ser feito como nenhum dos que existem. Se não valho mais, pelo menos sou diverso.» E acrescentara duramente: «Se a natureza fez bem ou mal em partir o molde em que me vasara, eis o de que se não pode fazer juízo senão após haver-me lido.»

Depois, porém, oh a dor devastadora! oh a dilacerante, a paralisante memória do tempo ido, que, por atroz, é sempre o melhor, tão de raiz seja, na saudade como no anelo, a esperança da redenção!

O perturbante autor contava assim: «Não sei como foi que meu pai suportou aquela perda; mas sei que dela jamais se consolou. Julgava ele revê-la em mim, sem poder esquecer que eu lha havia tirado; nunca me beijou que eu não sentisse, nos seus suspiros, nos seus convulsivos abraços, que uma saudade amarga se mesclava às suas carícias; com isso elas só ganhavam em ternura. Quando ele me dizia: Jean-Jacques, falemos de tua mãe; eu dizia-lhe: Então, meu pai, vamos chorar; e já só estas palavras lhe arrancavam as lágrimas.»

Também, no Porto, na modesta casa do Bonjardim, nessa tempestuosa noite invernal, a leitura do trecho fez cair as lágrimas de minha mãe e a voz de meu pai se embargou, tremendo. Também como Jean-Jaques, eu  nascera enfermo e doente. Eu também era uma criança impressionável, consoante Lamartine frisa que, de todo começo, fora Rousseau. Assim, no peito remexera-me o coração perante esse drama cândido e pungente de um serão passado entre um velho, uma criança e a recordação duma mãe morta.

Sampaio Bruno
A ideia de Deus
1902

Edição Lello & Irmão - Editores
1987

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