25 - Massarelos
Está uma chuvinha tão miúda que não cai; rodopia ao sabor de um vento ainda inútil, incapaz de incomodar uma folha por mais minúscula ou desacertar nem que seja um pouco mais o já desacertado voo de uma borboleta se as houvesse por aqui.
Um velho ao meu lado tosse com um esforço arrastado e escarra sem parar num lenço que nem me atrevo a olhar; o motorista enfadado tem ambas as mãos cerradas a apoiar o queixo, cotovelos nas coxas.
- Nem imagina o que vão fazer no terreno da antiga fábrica da sardinha!
O Canário no livro à minha espera e o motorista a fingir
- Pois é; a Bininha já falou nisso.
- Já viu?? Então ...
O Canário a desistir e deixar-me ouvir
... como é que se autoriza uma coisa assim? Doze andares? Doze?!? Diz que lá para o Natal do ano que vem estará pronto, cheio de gente nova, e velha, gente com dinheiro pois claro. E os que cá estavam cá estarão caladinhos como ratos, que são piores que ratos, cá mais p'ra trás a ver o rio por um canudo. Vota a gente p'ra isto. Aposto que estão dois ou três ou mais dos bem gordos a mangar com nós todos e a comer lagostas na Foz; é limpinho.
- Esse ricaço do Rodrigues bem me cheirava a queimado. Lembra-se quando o cabrão fechou a fábrica? Que em Marrocos não sei quê, que os espanhóis não sei o que mais, que estava mau, que a CEE não sei que mentiras. E o meu Zé e mais 150 a ver navios. O filho da puta gordo como um chibo estava era a fazer render ainda mais o peixe, digamos, o terreno, e nós agora nem navios nem rabelos nem o caralho.
- E a partir do meio-dia já vai ser quase noite.
O motorista a fazer horas
- Diz que o cheiro da fábrica era muito mau.
- O cheiro, o cheiro. A gente aqui nasceu com ele, era coisa nossa; pergunte a quem quiser. O raio da pouca sorte é que os nossos problemas aparecem-nos aqui vindos na cabeça de outras pessoas de lá dos sítios deles. Ninguém me venha dizer que os doze andares ou lá quantos são são para o nosso bem; os andares, mais os portões sempre fechados que só se entra com um aparelho tipo das televisões, uma arrecadação só para pôr o lixo maior que o buraco onde eu vivo há 50 anos, já viu;
- Um palacete!!
- Só para pôr o lixo fechado longe de onde passa gente para não lhes incomodar os narizes muito finos.
- O cheiro, o cheiro, o caralho.
O Canário adormeceu e o velho não tossiu mais; se calhar morreu.
Nestes primeiros dias de humidade esta gente vê-se e deseja-se para fazer a vida do costume. As velhas que mal se podem há que tempos, com as saquitas da mercearia, da farmácia, têm de arranjar maneira de lidar com mais o guarda-chuva que realmente não serve para nada com esta chuva quem nem é nem deixa de ser; os degraus do autocarro que são feitos para atletas e, claro, primeiro que consigam subir é o diabo, fechado já o guarda-chuva, as sacas a atrapalhar, o bilhete para mostrar, o porta moedas quando não o têm comprado antes, na paragem, as moedas a tilintar pelo chão fora quando se atrapalham nos trocos e o motorista, infinito, como se resolvesse alguma coisa
- Deixe estar. Paga amanhã.
a apreciar o desembrulho daquela tralha toda e elas um suspiro de chegar ao céu, árvore casa rua casa casa depois, ao se verem sentadas, coração a tamborilar no pescoço
- Ai meu Deus
a contar e recontar o dinheiro apanhado do chão, que falta sempre uma moedita; que seja das pretas.
Um feliz encontro de improbabilidades: semáforos, ligeiro atraso no arranque de um carro qualquer, um táxi a deixar sair uma mulher, um outro a esperar por alguém a entrar; uma conjugação de pequenas merdas, uma borboleta a voar como se por cinco segundos fosse pássaro, faz com que o autocarro avance um pouco mais que o motorista, embora todos já sentados, mas já tão calhado naquilo
- Segurem-se.
O velho afinal não morreu
- Já viu Miquinhas? Doze andares; um prédio. Já viu?? Um prédio.
a olhar para trás e nenhuma resposta.
- Aqui é que faziam um; está pr'aqui isto a criar bicheza e mato. Mas o que eles queriam era acabar com o cheiro. Tratantões.
O trânsito em sentido contrário a abrandar de repente, o nosso motorista a encostar o mais possível à berma, a sirene atrás de nós a esbracejar, a abrir caminho, e o velho ao meu lado como se não estivesse também a caminho
- Ui. Pela pressa é mais um que já nem pia.
Muito certo a sacar de novo o lenço do bolso
- Já foste!
A Miquinhas a lembrar-se do seu Jerónimo, que descanse em paz
- Valha-nos Deus.
- Ai p'ra mim este já vai direitinho; não vê a pressa?!?
A sirene a aumentar, a ficar mais perto, mais perto, a começar a ultrapassar-nos mas a parar mesmo ali ao nosso lado, em contra-mão, sem poder avançar mais.
- Olha-me aquele grande camelo que não se arruma. Filho da puta ainda um dia há-de estar dentro de uma a morrer de falta de ar ou dor no peito e a sentir o hospital a parar de se mexer e a não ficar mais perto; pode ser que se aflija mais e se vá ainda mais depressa.
- Boa viagem.
- Andamento.
- Não diga isso.
O Canário a acordar no livro e a chamar-me: "aproxima-te, não tenhas medo, olha as grades"; a sirene a avançar finalmente e a desviar de destino para levar o morto, se dependesse do meu companheiro.
David Fernandes
Um velho ao meu lado tosse com um esforço arrastado e escarra sem parar num lenço que nem me atrevo a olhar; o motorista enfadado tem ambas as mãos cerradas a apoiar o queixo, cotovelos nas coxas.
- Nem imagina o que vão fazer no terreno da antiga fábrica da sardinha!
O Canário no livro à minha espera e o motorista a fingir
- Pois é; a Bininha já falou nisso.
- Já viu?? Então ...
O Canário a desistir e deixar-me ouvir
... como é que se autoriza uma coisa assim? Doze andares? Doze?!? Diz que lá para o Natal do ano que vem estará pronto, cheio de gente nova, e velha, gente com dinheiro pois claro. E os que cá estavam cá estarão caladinhos como ratos, que são piores que ratos, cá mais p'ra trás a ver o rio por um canudo. Vota a gente p'ra isto. Aposto que estão dois ou três ou mais dos bem gordos a mangar com nós todos e a comer lagostas na Foz; é limpinho.
- Esse ricaço do Rodrigues bem me cheirava a queimado. Lembra-se quando o cabrão fechou a fábrica? Que em Marrocos não sei quê, que os espanhóis não sei o que mais, que estava mau, que a CEE não sei que mentiras. E o meu Zé e mais 150 a ver navios. O filho da puta gordo como um chibo estava era a fazer render ainda mais o peixe, digamos, o terreno, e nós agora nem navios nem rabelos nem o caralho.
- E a partir do meio-dia já vai ser quase noite.
O motorista a fazer horas
- Diz que o cheiro da fábrica era muito mau.
- O cheiro, o cheiro. A gente aqui nasceu com ele, era coisa nossa; pergunte a quem quiser. O raio da pouca sorte é que os nossos problemas aparecem-nos aqui vindos na cabeça de outras pessoas de lá dos sítios deles. Ninguém me venha dizer que os doze andares ou lá quantos são são para o nosso bem; os andares, mais os portões sempre fechados que só se entra com um aparelho tipo das televisões, uma arrecadação só para pôr o lixo maior que o buraco onde eu vivo há 50 anos, já viu;
- Um palacete!!
- Só para pôr o lixo fechado longe de onde passa gente para não lhes incomodar os narizes muito finos.
- O cheiro, o cheiro, o caralho.
O Canário adormeceu e o velho não tossiu mais; se calhar morreu.
Nestes primeiros dias de humidade esta gente vê-se e deseja-se para fazer a vida do costume. As velhas que mal se podem há que tempos, com as saquitas da mercearia, da farmácia, têm de arranjar maneira de lidar com mais o guarda-chuva que realmente não serve para nada com esta chuva quem nem é nem deixa de ser; os degraus do autocarro que são feitos para atletas e, claro, primeiro que consigam subir é o diabo, fechado já o guarda-chuva, as sacas a atrapalhar, o bilhete para mostrar, o porta moedas quando não o têm comprado antes, na paragem, as moedas a tilintar pelo chão fora quando se atrapalham nos trocos e o motorista, infinito, como se resolvesse alguma coisa
- Deixe estar. Paga amanhã.
a apreciar o desembrulho daquela tralha toda e elas um suspiro de chegar ao céu, árvore casa rua casa casa depois, ao se verem sentadas, coração a tamborilar no pescoço
- Ai meu Deus
a contar e recontar o dinheiro apanhado do chão, que falta sempre uma moedita; que seja das pretas.
Um feliz encontro de improbabilidades: semáforos, ligeiro atraso no arranque de um carro qualquer, um táxi a deixar sair uma mulher, um outro a esperar por alguém a entrar; uma conjugação de pequenas merdas, uma borboleta a voar como se por cinco segundos fosse pássaro, faz com que o autocarro avance um pouco mais que o motorista, embora todos já sentados, mas já tão calhado naquilo
- Segurem-se.
O velho afinal não morreu
- Já viu Miquinhas? Doze andares; um prédio. Já viu?? Um prédio.
a olhar para trás e nenhuma resposta.
- Aqui é que faziam um; está pr'aqui isto a criar bicheza e mato. Mas o que eles queriam era acabar com o cheiro. Tratantões.
O trânsito em sentido contrário a abrandar de repente, o nosso motorista a encostar o mais possível à berma, a sirene atrás de nós a esbracejar, a abrir caminho, e o velho ao meu lado como se não estivesse também a caminho
- Ui. Pela pressa é mais um que já nem pia.
Muito certo a sacar de novo o lenço do bolso
- Já foste!
A Miquinhas a lembrar-se do seu Jerónimo, que descanse em paz
- Valha-nos Deus.
- Ai p'ra mim este já vai direitinho; não vê a pressa?!?
A sirene a aumentar, a ficar mais perto, mais perto, a começar a ultrapassar-nos mas a parar mesmo ali ao nosso lado, em contra-mão, sem poder avançar mais.
- Olha-me aquele grande camelo que não se arruma. Filho da puta ainda um dia há-de estar dentro de uma a morrer de falta de ar ou dor no peito e a sentir o hospital a parar de se mexer e a não ficar mais perto; pode ser que se aflija mais e se vá ainda mais depressa.
- Boa viagem.
- Andamento.
- Não diga isso.
O Canário a acordar no livro e a chamar-me: "aproxima-te, não tenhas medo, olha as grades"; a sirene a avançar finalmente e a desviar de destino para levar o morto, se dependesse do meu companheiro.
David Fernandes
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