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Páginas inesquecíveis


Extracto de “Mulher em branco” de Rodrigo Guedes de Carvalho


«A mãe há-de desculpar-me, se é que estas coisas se desculpam, eu não ter estado presente na sua morte.
Mas se quer saber há uma outra coisa pior que quero que me desculpe. Que gostaria que me desculpasse.
Quando a mãe morreu, eu fiquei na mesma.
É certo que não estive presente porque o pai não me chamou, o pai não me avisou, nem a mim nem ao Paulo, como tanto lhe pediu, certamente estará recordada. O pai afinal não nos telefonou coisa nenhuma, como lhe garantia a sussurrar-lhe ao ouvido, para as enfermeiras não escutarem, o pai queria sossego quando visitava o hospital.
Andava já encantado lá com a rapariga, que visitava a tia dela mesmo ao seu lado.
É até estranho pensar que a mãe morreu quase ao mesmo tempo que a tia dela, libertando as duas, sem o saberem, o casal de pombinhos da prisão dos comas, das macas, dos cheiros, das esperas.
E quando a mãe morreu eu fiquei na mesma.
Acho que estava no emprego, ou já nem sei se estava no emprego. Estaria no supermercado às compras, a ver se descobria uns produtos dietéticos de que a Dóris gosta muito. A mãe não chegou nunca a conhecer a Dóris. Morreu sem a conhecer, sem conhecer a Dóris em mim, e quero acreditar que foi melhor para todos.
Não sei se estaria simplesmente no trânsito, a suspirar diante do vermelho que não muda, do nabo da frente que deixa o carro ir abaixo quando finalmente cai o verde. Ou por casa, a arrumar coisas que ando há que tempos para arrumar, a Dóris pressiona-me um pouco, ela tem um bocadinho a mania das limpezas, olhe, nisto até me faz lembrar a mãe. Embora a mãe limpasse o dia inteiro para se esquecer que não tinha mais nada para fazer, para não ouvir nada, para com sorte não ter de dizer nada.
Eu nesse dia estaria por aí, na minha vida por assim dizer. A vida já sem vocês, há tanto tempo sem vocês. A vida que escolhi simplesmente em fuga, o que diria o pai se soubesse da Dóris em mim, já imaginou, que diria o pai. A mãe sei que não diria nada, mas ainda assim foi melhor nunca saber.
Estaria por aí, quando sei finalmente que a mãe morreu. E fiquei na mesma, mãe. Ali, fosse onde fosse, naqueles segundos, na mesmíssima.
Se estava no supermercado, continuei a empurrar o carrinho para a zona dos produtos de higiene. Se estava no trânsito, meti a primeira, virei o volante, chamei um nome qualquer ao palerma que não conseguia arrancar o carro
(atrás dele outros carros, mais insultos, punhos fechados em ameaça, ai dele se volta a deixar cair o vernelho)
se porventura estava em casa, acendi um cigarro, olhei pela janela e debrucei-me outra vez sobre a confusão de papéis que nunca arrumo, contas pagas fora dos dossiês, recortes que já não me lembro porque guardei, dar um jeito às coisas para fazer uma surpresa à Dóris, foi isso que certamente me ocorreu, perante a informação de que a mãe morreu.


Até porque um dia eu avisei-a. Se me fizer essa justiça, lembra-se. Eu avisei-a que a mãe ia morrer, mãe.
Não que a mãe estivesse já doente, a não ser que digamos que padecia de uma solidão sem igual. Ocorre-me que a mãe não sabia mais. Não sabia que se poderia viver de outra forma, não alcançaria que, de alguma maneira, não merecia. E a mãe, apesar de não merecer, apesar de algum dia ter pensado que não merecia, arrastava-se apenas, como uma sombra, solícita e vergada.
E quando a mãe morreu fiquei na mesma.
Nem um grito, nem um ai. Não me pareceu ver o mundo desabar, não me quedei, desorientada, sentada num passeio, com as lágrimas a correrem-me e as pessoas a perguntarem-me se eu me sentia bem. Fiquei na mesma porque sou assim nos alívios. Talvez que descanse, agora. Perguntei-me tanto tempo como iria reagir, antevi cenários. Fiquei na mesma, a mãe que descanse.


Um dia avisei-a. Não era já miúda, não era ainda mulher, vejo hoje que não sabia bem o que era, como continuo sem saber o que sou. A mãe passava a ferro, ou chegava da mercearia, curvada e a arfar, os dedos roxos a equilibrar sacos de plástico, ou punha o avental e abria o frigorífico, a medir os minutos até que ele chegasse, os exactos minutos para ele chegar a casa e a comida não estar nem muito quente nem muito fria.
Ou então a mãe fazia por não me ouvir, protegida do mundo por um aspirador que ruminava as carpetes a soluços de britadeira, limpava o pó mil vezes antes de limpar outras mil, os frasquinhos, os santos de cerâmica, os cinzeiros dele, as cómodas, os candeeiros de pé dourado, a mesa da cozinha, as molduras das fotografias, onde nos assemelhávamos a uma família.
E eu um dia disse-lhe. A mãe vai morrer, mãe.
A mãe tinha arregaçado as mangas para passar a loiça por água antes de a meter na máquina, eu disse-lhe, a mãe fez por não escutar, as mangas para cima descobriam-lhe o corpo até ao antebraço e viam-se bem os pulsos pisados, arranhões que com o anos se iam sobrepondo, riscos de sangue antigo, eu a perceber, nesse tempo em que já não se é miúda nem ainda mulher, quando não se sabe o que somos mas não queremos ficar, a perceber porque é que afinal a mãe nem se despia na praia, porque andava sempre coberta pela casa, porque maldizia o Verão e suspirava pelo Inverno.
Porque antes de lhe dizer
A mãe vai morrer, mãe
ouvia-a por vezes a chorar na varanda se julgava que já estávamos a dormir, acompanhava-lhe em silêncio as insónias, o que cuidava serem insónias e era afinal só a mãe não se querer deitar, não querer adormecer ao lado dele, a mãe a conter soluços a rondar a casa, encostada à banca da cozinha, sozinha no escuro, se julgava já ninguém a poder ouvir. E eu escutava, posso hoje dizer-lhe.
Como escutava o resfolegar dele, o vosso quarto era mesmo ao lado do meu, podia ouvir os bichos da madeira mas nunca ouvia a mãe, a mãe era um silêncio impossível de quebrar, a mãe era um nada absoluto, a cabeceira da cama batia um compasso de segundos na parede, mesmo junto à minha cabeça, a respiração pesada dele, uns grunhidos, uma investida de fera raivosa mas nada mais, nada mais, da mãe nem um suspiro, nem um ai, nada que me garantisse estar de facto debaixo dele, esmagada pelo tronco dele, aprisionada pelas pernas dele. A mãe era um nada absoluto.
Como escutava, imagine, quando ele não resfolegava ou gemia ou se precipitava sobre si, mas lhe falava ao ouvido, cuidando também ele que não percebíamos, quando lhe falava ao ouvido se tinha bebido outra vez, se tinha bebido mais uma vez, se tinha bebido como sempre, murmurava-lhe ao ouvido como quem lhe cospe, rilhava os dentes a dizer-lhe coisas que nunca entendi, palavras soltas, palavras rápidas e fundas, a cuspir-lhe, um língua de bicho mesmo junto à sua cara, uma raiva de vinho, e a mãe nem um ai, nem um grito, um tremor, que às vezes até me parecia ele estar sozinho, às voltas na cama, a estrangular um boneco, uma mãe imaginária, uma mãe que já não existia, o bagaço a dar-lhe tonturas, a tossir os três maços por dia para cima do seu nariz, da sua boca, a apertar-lhe as orelhas, a beliscar-lhe os peitos, a torcer-lhe o braço por baixo dos lençóis, e às vezes, mãe
(quantas vezes, mãe?)
uma estalada, sei hoje que eram estaladas, penso que lhe daria com a mão aberta para não se notar muito quando a mãe nos preparasse o pequeno-almoço, estalos na noite, noite fora, as noites quase todas, os anos todos, toda a sua vida, e a nossa vida, a mão dele puxada atrás, bem acima da cabeça, uma culatra de chicote, a desabar na sua nuca, nos maxilares, nos seus seios, na barriga, a mãe sem um ai, só a tentar virar-se para proteger a cara, marcas roxas uma por cima das outras, nódoas vermelho-vivo, manchas azuladas junto aos mamilos, ou a desenharem de azul as costelas, ou nas omoplatas, todas as noites, os anos todos, riscos de sangue pisado uma e outra e outra vez, o seu corpo um mapa dorido, resignado, silencioso, a arrastar-se a custo, quando ele finalmente adormecesse de cansaço, braços abertos, boca aberta, três maços e mais de um garrafão a subirem as paredes do quarto, o seu corpo silencioso, sangrado, mordido, espezinhado por socos metódicos, a arrastar-se para a banca da cozinha, a chorar abafado, para dentro do pano do pó, a fim de que não a escutássemos.


E não me serviu de nada avisá-la, assim a mãe vai morrer, mãe.
Como não teve qualquer resultado dizer ao meu irmão, assim a mãe vai morrer, Paulo.
Porque ele lá na vida dele, a desvalorizar, a dizer-me que também não era bem assim, a sossegar-me, garantindo que a mãe e o pai lá tinham a sua maneira de se entenderem, ele só com olhos e ouvidos para a namorada, ele a anunciar-me que ia ter um filho e assim já podia casar com ela, ele todo na vida dele, prioridades do coração, que não é afinal tão grande como nos ensinam, não afinal tão grande que lá caibam muitas coisas ao mesmo tempo.


E jurei que não haveria de morrer como a mãe, mãe.
E que nunca nenhum homem me levantaria a mão, nem me espetaria um hálito grosso de cerveja, nem me haveria de invadir, tocar, irromper em mim como um carroceiro sujo desembestado.
E não haveria de ir às compras, fazer almoços, aspirar porcaria, despejar cinzeiros, a fungar lágrimas escondidas.
E não me abriria nunca como as conchas, pela força enferrujada de uma faca romba, a forçar-me a carne desistida. E não quereria ver, alguma vez, o que nunca vi mas adivinhei anos a fio, as noites todas em que pensava que a mãe estaria ainda viva ou já defunta, um boneco de pano nas mãos dele, pernas abertas e rosto para o lado, para a parede branca, um trapo a ferrar os lábios para não lhe ouvirmos nem um ai, não me hão-de romper com nenhum chicote de cavalo cego.
Queria ter ido ainda a tempo de lhe apresentar a Dóris, e algumas outras antes dela. Ia lá a mãe imaginar.
Queria dizer-lhe que nas minhas noites não há animais que me esporeiam, que não me fico em silêncio para não me ouvirem suspirar. Queria ter-lhe dito que me avisei a tempo e não hei-de morrer como a mãe, mãe.
Não fecho os olhos com força de cada vez que me deito, não tenho de esconder um corpo lancinante, adormeço em paz, aquecida, confortada, e os braços são para abraçar, mãe, fique sabendo, as pernas são para enroscar, os peitos para encostar, ao de leve, e pele toda para arrepiar, os lábios para sorrir, os olhos para ver de frente, ver de perto, sem medo, mãe, porque é possível embora seja tarde para si, é possível não morrer as noites todas, sem medo de monstros de caverna, de pêlo grosso que nos fere a alma todas as noites, riscos de sangue novo por cima de riscos de sangue velho, todas as noites de uma vida, todas as noites dentes e saliva e um punho de garras, abertas fechadas abertas, que desaba sobre nós.»

Comentários

Maria João disse…
"Ah! Já me esquecia..." não é "um blog obscuro que ninguém lê", como o David disse, um dia. É um blog que dá socos no estômago do leitor e que pode despertar consciências adormecidas para o que está "fora das luzes". E isto é urgente, também para que seja "possível não morrer as noites todas, sem medo de monstros de caverna, de pêlo grosso que nos fere a alma todas as noites, riscos de sangue novo por cima de riscos de sangue velho (...)".

Um abraço
Maria João Oliveira
David Fernandes disse…
É urgente sim.
Obrigado.

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