Leituras III
“Alguns dias mais tarde, Banaka fez a sua aparição no café. Completamente bêbado, sentou-se sobre um tamborete do bar, caiu duas vezes, voltou a subir, pediu uma aguardente de cidra e pousou a cabeça no balcão. Tamina percebeu que ele chorava.
«O que é que se passa, sr. Banaka?» perguntou ela.
Banaka ergueu um olhar lacrimejante e mostrou o peito com o dedo: «Não sou nada, está a perceber! Não sou nada! Não existo!»
Depois foi à casa de banho e da casa de banho directamente para a rua, sem pagar.
Tamina contou o incidente a Hugo que à laia de explicação, lhe mostrou uma página de jornal em que estavam várias recensões de livros e uma nota de quatro linhas sarcásticas sobre a produção de Banaka.
O episódio de Banaka, a apontar o peito com o indicador e a chorar por não existir, lembra-me um verso do Divan ocidental-oriental de Goethe: Estaremos vivos quando vivem outros homens? Na pergunta de Goethe dissimula-se todo o mistério da condição do escritor: o homem , pelo facto de escrever livros, transforma-se em universo (não se fala em universo de Balzac, em universo de Tchekov, em universo de Kafka?) e o que é próprio de um universo é precisamente ser único. A existência de outro universo ameaça-o na sua própria essência.
Dois sapateiros, desde que não tenham os estabelecimentos na mesma rua, podem viver em perfeita harmonia. Mas assim que se põem a escrever um livro sobre o destino dos sapateiros, começam logo a ser mutuamente incómodos, e a colocar-se a questão: Um sapateiro estará vivo quando existem outros sapateiros?
Tamina tem a impressão de que basta um olhar estranho para retirar todo o valor aos seus cadernos íntimos, e Goethe está persuadido de que um só olhar de um só ser humano que não venha pousar-se sobre as linhas da sua obra, põe em causa a própria existência de Goethe. A diferença entre Tamina e Goethe é a diferença entre o homem e o escritor.
Aquele que escreve livros é tudo (um universo único para si próprio e para todos os outros) ou nada. E como nunca ninguém conseguirá ser tudo, todos nós, que escrevemos livros, somos nada. Somos descontentes, invejosos, azedos, e desejamos a morte do outro. Nisso somos todos iguais: Banaka, Bibi, eu e Goethe.
A irresistível proliferação da grafomania entre os homens políticos, os motoristas de táxi, as parturientes, os amantes, os assassinos, os ladrões, as prostitutas, os prefeitos, os médicos e os doentes demonstra-me que qualquer homem, sem excepção, traz em si um escritor virtual, de modo que toda a espécie humana poderia, com razão, descer à rua e gritar: somos todos escritores!
Porque cada um sofre com a ideia de desaparecer num universo indiferente, sem ser ouvido nem visto, e por essa razão quer, enquanto pode, transformar-se no seu próprio universo de palavras.
Quando um dia (muito em breve) todos os homens acordarem escritores, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais.”
“O livro do riso e do esquecimento”, Milan Kundera
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