Avançar para o conteúdo principal

A delicada arte de soltar (*)

«Atingir o alvo é algo secundário para os kyudokas, pelo menos inicialmente. Na arte tradicional japonesa de tiro ao arco, o período formativo de um arqueiro é passado a conciliar a técnica, o físico e o espírito. Os entusiastas do "arco e flecha" necessitam, acima de tudo, de duas qualidades: perseverança e paciência.»

«Com o seu dedo indicador, Akira Sato desenha uma linha no tampo da mesa. Segue até uma extremidade que designa o alvo, o qual Sato determina por si próprio, apesar de saber que talvez nunca o atinja, pelo menos, a longo prazo. Porque o kyudo, uma arte tradicional de arco do Japão, é uma disciplina exigente, até mesmo para um professor altamente respeitado como é o seu caso.» (*)



Parece tudo muito estranho e incompatível com aquilo a que se chama "sucesso", mas nem sequer foi esta estranheza que me chamou a atenção; foi coisa de linguagem, coisa de palavras.

Aparentemente, há uma gralha no texto: "apesar de saber que talvez nunca o atinja [o alvo], pelo menos, a longo prazo". E pode muito bem ser: é muito provável que o autor do texto pretendera dizer "pelo menos a curto prazo".

O que eu acho curioso é que, propositado ou não, por linha tortas ou direitas, o autor usou as palavras certas para definir uma actividade sem fim, que pretende atingir algo para lá do seu objectivo.

Sabe que não se conseguirá, pelo menos, a longo prazo, ilumina belissimamente o, só aparente, paradoxo.

É uma frase que pode ter contornos filosóficos?!? Pode pois, mas isso não importa; o que importa é a poesia.

David Augusto Fernandes


--------------------------------------
(*) Título e extractos assinalados retirados de um texto de Felix Zimmermann para a revista Mercedes Magazine nº 03/2008

Mais informação em http://www.kyudo.com

Comentários

Anónimo disse…
Ainda nem li, corrida para aprender a mexer no LapTop, pelo aniversário da filha, que é hoje, e pedindo sua ajuda para um novo blog...beijos de saudades
Odila

http://escrevercoisasdemaria.blogspot.com/

Mensagens populares deste blogue

“Não existem monstros e a natureza é uma só" (1)

Enquanto preparo o pregado que colocarei no forno daqui a pouco penso, como sempre acontece enquanto preparo pregados para colocar no forno - ou na grelha, em Darwin e interrogo-me se aquele olho terá atravessado o crânio pelo interior ou pelo exterior ou se sempre terá estado ali para me fazer questionar a normalidade da simetria. Hoje fui procurar aquela citação que sabia ter lido (o forno adquire ainda a temperatura ideal, nada a temer) e ocorre-me directamente dela a ideia do homem parasita e destruidor do planeta, inimigo da natureza, propalada por uma certa eco-ideologia do fim do mundo, como se o homem de hoje, que se supõe pior do que o de outrora muito mais frugal, ligado à terra e invejável, não tivesse sido resultado directo e inelutável da natureza ela própria. Não sendo assim, isto é, acreditando-se que o homem terá conseguido adquirir características que lhe permitem contrariar os instintos naturais monstruosos de que a doce mãe natureza o terá, perversamente

Dos pés à cabeça

Os incríveis tapetes persas, originais, diz-se serem produzidos com pequenos defeitos propositados, na simetria ou na coloração. Obras de realização humana, é suposto não serem perfeitas; perfeito só Deus. Lembro-me do aparecimento dos computadores na produção artística (sou desse tempo), da música ao cinema, e de pensar que um dia, seria impossível ao olhar do ser humano distinguir um Robert de Niro CGI do homem real de carne e osso. E lembro-me também de pensar, de imaginar, que, nesse tempo futuro (hoje presente), o ser humano teria a obrigação de assinalar, de alguma maneira, a verdade. Na época não conhecia ainda aquela característica dos tapetes persas, pelo que o que me pareceu uma ideia minha genial já alguém, séculos se não milénios antes, a tinha tido e, o que é mais importante, efectivamente realizado. O que aconteceu à verdade nestes 2000 e tantos anos, entre os artesãos persas e os georges lucas da actualidade, na pequena viagem de um tapete até uma conversa com o ChatGPT?

Leituras III

“Alguns dias mais tarde, Banaka fez a sua aparição no café. Completamente bêbado, sentou-se sobre um tamborete do bar, caiu duas vezes, voltou a subir, pediu uma aguardente de cidra e pousou a cabeça no balcão. Tamina percebeu que ele chorava. «O que é que se passa, sr. Banaka?» perguntou ela. Banaka ergueu um olhar lacrimejante e mostrou o peito com o dedo: «Não sou nada, está a perceber! Não sou nada! Não existo!» Depois foi à casa de banho e da casa de banho directamente para a rua, sem pagar. Tamina contou o incidente a Hugo que à laia de explicação, lhe mostrou uma página de jornal em que estavam várias recensões de livros e uma nota de quatro linhas sarcásticas sobre a produção de Banaka. O episódio de Banaka, a apontar o peito com o indicador e a chorar por não existir, lembra-me um verso do Divan ocidental-oriental de Goethe: Estaremos vivos quando vivem outros homens? Na pergunta de Goethe dissimula-se todo o mistério da condição do escritor: o homem , pelo facto de escrever l