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Leituras I


“O recém-nascido não concebe que o seu corpo é mais parte de si próprio do que os objectos que o rodeiam, e brinca com os dedos dos pés sem a mínima noção de que lhe pertencem mais do que a sua roca; e é só pouco a pouco, através da dor, que compreende a realidade do corpo. São necessárias experiências idênticas para que o indivíduo se torne consciente de si próprio; contudo há uma diferença: enquanto todos igualmente adquirem consciência do corpo como um organismo completo e separado, nem todos adquirem igualmente a consciência de si próprios como uma personalidade completa e separada. O sentimento de diferenciação dos outros surge para a maioria com a puberdade mas não se desenvolve sempre a um grau tal que torne perceptível ao indivíduo a diferença entre o indivíduo e o seu próximo. São estes, os tão pouco conscientes de si próprios como as abelhas numa colmeia, os afortunados na vida, pois têm os melhores ensejos de felicidade: as suas actividades são partilhadas por todos e os seus prazeres só são prazeres porque fruídos em comum; vêmo-los dançar na segunda-feira de Pentecostes em Hampstead Heath, aplaudir numa partida de futebol ou assistir a um desfile real das janelas de um clube de Pall Mall. Por sua causa tem o homem sido considerado um animal sociável.”


“Servidão Humana”, W. Somerset Maugham

Ed. “Livros do Brasil”, 13ª edição, pág 42

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Enquanto preparo o pregado que colocarei no forno daqui a pouco penso, como sempre acontece enquanto preparo pregados para colocar no forno - ou na grelha, em Darwin e interrogo-me se aquele olho terá atravessado o crânio pelo interior ou pelo exterior ou se sempre terá estado ali para me fazer questionar a normalidade da simetria. Hoje fui procurar aquela citação que sabia ter lido (o forno adquire ainda a temperatura ideal, nada a temer) e ocorre-me directamente dela a ideia do homem parasita e destruidor do planeta, inimigo da natureza, propalada por uma certa eco-ideologia do fim do mundo, como se o homem de hoje, que se supõe pior do que o de outrora muito mais frugal, ligado à terra e invejável, não tivesse sido resultado directo e inelutável da natureza ela própria. Não sendo assim, isto é, acreditando-se que o homem terá conseguido adquirir características que lhe permitem contrariar os instintos naturais monstruosos de que a doce mãe natureza o terá, perversamente

Dos pés à cabeça

Os incríveis tapetes persas, originais, diz-se serem produzidos com pequenos defeitos propositados, na simetria ou na coloração. Obras de realização humana, é suposto não serem perfeitas; perfeito só Deus. Lembro-me do aparecimento dos computadores na produção artística (sou desse tempo), da música ao cinema, e de pensar que um dia, seria impossível ao olhar do ser humano distinguir um Robert de Niro CGI do homem real de carne e osso. E lembro-me também de pensar, de imaginar, que, nesse tempo futuro (hoje presente), o ser humano teria a obrigação de assinalar, de alguma maneira, a verdade. Na época não conhecia ainda aquela característica dos tapetes persas, pelo que o que me pareceu uma ideia minha genial já alguém, séculos se não milénios antes, a tinha tido e, o que é mais importante, efectivamente realizado. O que aconteceu à verdade nestes 2000 e tantos anos, entre os artesãos persas e os georges lucas da actualidade, na pequena viagem de um tapete até uma conversa com o ChatGPT?

Leituras III

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