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A Ana não me fala há muitos dias e atrás de mim um de dois rapazes fala sobre, como se fosse para, a rapariga que se cruzou connosco antes de entrarmos na escada tão rolante como um automóvel é (há coisas que não entendo).

- Ai se fosses minha irmã: tenho medo mana, deixa-me dormir na tua cama.

O outro a rir, a dizer qualquer coisa que eu não percebi e eu p'ra mim a corrigir: é mãe; ai se fosses minha mãe.

- Sabes lá que bom seria.

O outro parou de rir só para dizer outra coisa, ou a mesma, e eu p'ra mim a corrigir:

- Mãe.

Rolávamos com a escada andar abaixo, sete passos depois as portas de vidro rolariam também para quem quisesse sair dali, e penso na Ana que não me fala há muitos dias porque sei que não faria como eu, p'ra mim sempre a corrigir ou sempre p'ra mim a corrigir; a Ana chama as coisas pelos seus nomes e ninguém precisa de estar p'ra si a corrigir.

A Ana diria algo mas não está aqui, também por isso penso nela.

Um pouco mais tarde voltei a encontrar os dois rapazes dos quais um gostaria de ter irmã, enganou-se ele, ou a tendo fosse diferente do que é para que quando tivesse medo pudesse dizer: - tenho medo mamã (devia ter dito), deixa-me dormir na tua cama.

Pensei p'ra mim outra vez porque não me fala a Ana há muitos dias e à minha frente um dos dois rapazes fala para, como se fosse sobre, o outro:

- Eu sei do que gostam as mulheres, pá.

O outro quase a rir e eu p'ra mim a pensar: - estou a demorar demasiado tempo a perceber isso e estou a perder algo; ou alguém está.

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