AS FOTOGRAFIAS DE LOBO ANTUNES E O TABULEIRO DE RADJABOV

Teimour Radjabov é um judeu azeri de 33 anos, jogador profissional de xadrez, grande mestre desde 2001 e ocupa o 10º lugar no ranking mundial da modalidade.

Radjabov venceu no início deste ano um importante torneio de partidas rápidas disputado online entre os dias 26 de Dezembro e 3 de Janeiro últimos, o Airthings Masters com prémios a totalizar 200000 dólares, 60000 dos quais reservados para o vencedor. Neste torneio participaram 12 dos principais jogadores da actualidade incluindo Magnus Carlsen, o n.1 mundial, e outros 6 da lista dos 10 melhores do mundo. Foi uma importante vitória.

Os jogos foram transmitidos em tempo real e puderam ser acompanhados “ao vivo” com comentários em directo.

Radjabov impressiona pela sua calma (real ou apenas aparente como acabou por confessar) e não raras vezes fecha os olhos enquanto calcula um posição mais exigente.

Todos os jogadores de xadrez a partir de um determinado nível, desde logo todos os grande mestres, são capazes de jogar xadrez sem precisarem de tabuleiro, sem necessidade de ver as peças, o chamado “xadrez às cegas”, pelo que, o facto de um jogador fechar os olhos não é algo de particularmente estranho.

Depois de vencer a última partida do match da final, Radjabov visivelmente emocionado foi entrevistado e de entre as respostas às várias perguntas colocadas, uma chamou a minha atenção.

Perguntava a entrevistadora sobre os momentos em que fechava os olhos durante os jogos, porquê, tratando-se de partidas rápidas em que o tempo de resposta a cada lance pode ser decisivo; a resposta foi desconcertante. Segundo ele, não se tratava de procurar maior concentração mas apenas uma forma de melhor ver a posição. Não foram exactamente estas as suas palavras, disse ele: “muitas vezes ao olhar para o tabuleiro vemos um bispo na sua casa de partida mas na nossa mente ele não está lá e isso pode dificultar a análise da posição”.

Muito se tem discutido sobre a genialidade dos jogadores de xadrez deste nível, das suas capacidades mentais incompreensíveis para os comuns de nós, a capacidade de analisar vários lances em avanço, a memória prodigiosa que lhes permite recordar uma partida do passado próximo ou remoto, sua ou alheia, em que determinada posição foi atingida, como determinado lance foi respondido e com que resultado. Um sem número de habilidades mentais impressionantes que nos leva a questionar que características assombrosas possuirá o cérebro de um destes seres humanos.

A resposta de Radjabov à inocente pergunta sobre o seu fechar de olhos pode ajudar a perceber o funcionamento da mente de um jogador de xadrez, ou pelos menos da mente escaquista de Radjabov.

O facto de, em determinado momento de um jogo de xadrez, uma peça se encontrar na sua casa de partida não significa que sempre lá tenha estado. Com a excepção dos peões que não recuam, todas as peças podem mover-se "livremente" sobre o tabuleiro e saindo da sua posição inicial a ela regressar mais tarde.

A resposta de Radjabov “vemos um bispo na sua casa de partida mas na nossa mente ele não está lá”, conjecturo, refere-se precisamente a um destes casos o que, a ser verdade, indica que na sua mente, uma determinada posição das peças sobre o tabuleiro não é apenas uma imagem estática mas antes o resultado de um conjunto de lances prévios, seus e do seu oponente, que a ela conduziram, uma sequência de lances potencialmente indiciadora de intensões, tácticas, estratégias, uma sucessão de pensamentos consequentes e lógicos.

Sabemos da maior facilidade de memorização de algo quando a esse algo adicionamos uma história, uma narrativa, uma mnemónica que seja, muitas vezes até maior e aparentemente mais complexa do que o objecto a memorizar. A mente de Radjabov talvez funcione assim e olhar o tabuleiro lhe cause algum tipo de dissonância cognitiva entre a representação do tabuleiro na sua mente, dinâmica, narrativa, e a sua imagem estática.

Como em tantos casos nas nossas vidas, um momento é, muito para lá dele, o tempo até ele; um lugar é, as mais das vezes, as voltas, revoltas, avanços e recuos para a ele chegar.

É talvez por isso que as fotografias das férias dificilmente interessam a alguém que as não tenha vivido e quem as viveu não as vê como imagens estáticas porque houve vida a decorrer antes e depois delas. E, se fecharmos os olhos, a praia ou o avô são imagens muito mais vívidas e interpeladoras do que as suas meras representações no papel.

Preferiremos certamente fechar os olhos e, como Radjabov, não olhar o tabuleiro, ou as fotografias da cómoda de António Lobo Antunes: “tudo morto”.

Comentários

Unknown disse…
Vivo-morto
e/ou

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